Interactive sound installations - Collaborations with Naomi Kaly
Oporto-Brooklyn Bridge
Awarded 2nd Prize at Future Places - Digital Media Festival, Maus Hábitos, Oporto, Portugal. October 2009
A brochure with a text by Inês Barreiros and João Mário Grillo accompanies the exhibition. (Please see text below)
Brochure design: Untitled-1.net
Inaugurada em 1966, como Ponte Salazar, a Ponte 25 de Abril veio suturar a ferida que em Lisboa separava o Norte do Sul do país: o rio Tejo. Mas a ponte nunca foi só tecnicamente isso: uma obra de engenharia destinada a resolver o problema de uma travessia difícil (e que é também simbólica). Apropriada pelo tempo e pela História e os seus agentes, a ponte revelou-se um elemento decisivo na transformação do país: da sua geografia, da sua dinâmica e mesmo da sua identidade, com tudo o que de negativo nisso está envolvido (caos urbanístico, especulação imobiliária, pauperização do ambiente e das condições de vida urbana, turismo de massas). Rebaptizada justamente de Ponte 25 de Abril no pós-revolução, essa mudança reflectiu a passagem de uma ponte do regime (então no seu último fôlego) para uma ponte do povo. Na verdade, mais do que uma ponte, para Portugal ela é a ponte. Aliás, não por acaso, tornar-se-ia o cenário, em 1994, da última grande manifestação de força e indignação popular: contra o aumento das portagens decretado pelo governo de Cavaco Silva e que acabaria por revelar ser o seu canto de cisne. Nesse sentido, a ponte, esta e outras, é também um lugar que se deixa habitar e que pode ser sempre temido porque indefinidamente agenciável. Via de passagem, lugar de combate, apparatus, como o são potencialmente todas as pontes. É essa mesmo a sua condição.
Sendo uma obra referenciada pela ideia de ponte, muito do que atrás se disse teria que ressoar inevitavelmente em Lisbon-San Francisco Bridge de Alyssa Casey & Naomi Kaly, espelhando de forma categórica todo o seu alcance, para além daquele visivelmente mais imediato: a representação de uma obra de engenharia/arquitectura através das possibilidades oferecidas pela linguagem e os meios tecnológicos da instalação multimédia. Tendo como detonador a semelhança algo falaciosa entre a Golden Gate e a 25 de Abril, as artistas conseguiram ver o que as faz serem particulares na globalidade e diversidade do universo das pontes, quer dizer, aquilo que lhes empresta uma imediata identidade. Primeiro, de um modo “audível”, nas montagens de registos sonoros tomados em cada uma das pontes, depois, na reciprocidade arquitectónica dos pares sonoros escolhidos. Mas essa identidade particular é-nos apresentada através de uma estrutura minimal que visa, sobretudo, pôr em evidência de que modo os particularismos geográficos, humanos, idiomáticos e/ou arquitectónicos de qualquer ponte possuem essa natureza própria de ponte que a faz ser reconhecível, não só no meio de outras “construções”, mas também na espécie de acções humanas que tal dispositivo parece induzir.
Outros viram isto mesmo: cineastas como Joris Ivens (De Brug , 1927-28) e Manoel de Oliveira (Douro, Faina Fluvial, 1931) – que imediatamente, nas suas obras iniciais, decidiram provocar este confronto entre dois apparatus modernos (a ponte de ferro e a máquina de filmar); ou escultores como Richard Serra em Railroad Turnbridge (1976) – obra decisiva da vanguarda americana; mas também filósofos como Martin Heidegger que explorou muito bem este interesse ontológico da “ponte”: “Uma ponte é uma coisa e apenas isso. Apenas isso? É que sendo só uma coisa a ponte é a reunião de todas as suas quatro faces [fourfold]” (1951: 153). Quer dizer então que sem verem obrigatoriamente na ponte o que cineastas, escultor e filósofo nela viram, Alyssa Casey & Naomi Kaly pressentem, igualmente, nesse lugar insólito, um acontecimento fenomenológico particular ou, pelo menos, o suporte transitivo para resgatar um conjunto de experiências humanas catalisadas pela existência desse objecto na paisagem, que faz paisagem e a partir do qual esta toma verdadeiramente um sentido:
“’Leve e poderosa, a ponte lança-se sobre o rio. Ela não liga apenas as duas margens que já lhe pré-existiam. É a passagem da ponte que faz surgir as margens como margens. É a ponte que as opõe especialmente uma à outra... Assim, em vez de ser a ponte a tomar o seu lugar no espaço, é o espaço mesmo que se compõe a partir dela” (Heidegger 1951: 152-154).
Ao miniaturizar a estrutura arquitectónica das suas pontes, ao dar expressão e expansão à voz e à experiência de quem as atravessa, Alyssa Casey & Naomi Kaly fazem então surgir esta ideia matricial da ponte enquanto objecto fenomenológico como a verdadeira matéria prima do seu trabalho sobre a qual é depois accionado o seu dispositivo. Neste projecto ressoa a melhor genealogia filosófico-artística que há pouco invocámos, tanto mais que a peça comporta ainda uma decisiva dimensão de performatividade, obrigando o utilizador a entrar no desafio lúdico de reencenação física da travessia, para aceder à manipulação, montagem e recomposição de vozes e memórias comandadas a partir da pequena conta/cursor que percorre os fios condutores. É em torno desta dimensão performativa que Lisbon-San Francisco Bridge propõe ao utilizador que viva o dispositivo, que o incorpore através das leituras, visões, aspirações e memórias da multidão comprimida em forma info-electrónica.
Poder-se-á todavia questionar se o modelo de Alyssa Casey & Naomi Kaly, cujos parâmetros de realização estética e tecnológica parecem irrepreensíveis, não se poderia projectar em realidades distintas, para além daquelas em que as pontes (estas ou outras) foram efectivamente executadas. É que olhando o dispositivo que as artistas tão perfeitamente conceberam é impossível não pensar na potencialidade política que ele contém e de como seria urgente aplicá-la em negativo, quer dizer, em realidades marcadas por pontes por ora impossíveis (sendo a fronteira israelo-palestiniana ou a que separa o México dos Estados Unidos apenas dois exemplos evidentes).
Tome-se esta projecção como algo que não é desperto por nenhum desejo ecuménico ou de hipotética consensualização entre lados opostos mas, pelo contrário, pela vontade de resgatar o que é radical à própria ideia de conflito que lhe é subjacente. Seguramente que, nesse caso, o dispositivo de Lisbon-San Francisco Bridge se poderia converter num autêntico apparatus, no sentido que Walter Benjamin deu ao termo (1934) - um exacto equivalente do modo como as pontes, como viu Heidegger, podem ser habitadas como actores decisivos nos processos de transformação global da paisagem. Pense-se, de novo, no caso da Ponte 25 de Abril, sugerida recentemente pelo Governo como a solução para a ligação de alta velocidade entre Portugal e a Europa. Como a melhor praxis, a ponte, no seu particularismo, pode constituir-se num apparatus, i.e., num instrumento inconformado à própria ideia de “destino histórico” e ao absurdo das suas margens políticas. Tal como a arte, de resto, quando se trata de cumprir a sua missão. Aí reside a sua derradeira (verdadeira) “ficção”.
Inês Barreiros | João Mário Grillo - June 2010
Inaugurated in 1966 as Ponte Salazar, the 25th of April Bridge sutured the wound that, in Lisbon, isolated the north from the south of the country: the Tagus River. But the bridge was never a mere technology: a work of engineering built to resolve the problems of a difficult crossing (that is also symbolic). Appropriated by time, history and historical agents, the bridge became a decisive element for the transformation of the country: its geography, dynamics and even identity, with all the negative aspects included therein (urban chaos, property speculation, degradation of the environment and urban conditions, and mass tourism). Justly renamed the 25th of April Bridge after the revolution of 1974, this change reflected the passage from a bridge of the regime (then in its last breath) to a bridge of the people. In reality, to Portugal the 25th of April Bridge is more than just a bridge - it is the bridge. More so, and not by chance, in 1994 this bridge would become the scene of the last large popular protest against the toll increase decreed by the Cavaco Silva's government, an event that anticipated its downfall. In this sense, the bridge, this particular one and others, is a place that makes room for dwelling and, because of its infinite potential for agency, always feared. A passage, a place of struggle, an apparatus, is precisely the condition of all bridges.
A work inhabited by the idea of bridge, Lisbon-San Francisco Bridge by Alyssa Casey & Naomi Kaly inevitably resonates with these observations, categorically mirroring their entire range beyond the visibly immediate aspect: the representation of a work of engineering/architecture through the possibilities offered by the language and the technological means of multi-media installation. Inspired by the fallacious resemblance between the Golden Gate Bridge and the 25th of April Bridge, the artists were able to see what makes them unique among the universe of bridges, i.e., that which lends them an immediate identity. First, in an “audible” way - the montage of recorded sounds taken from interviews on or near both of the bridges - secondly, in the architectural reciprocity between the chosen sound pairs. This particular identity is represented by a minimal structure that aims to evince the geographic, human, idiomatic, and/or architectonic particularities of any bridge’s intrinsic nature, making it recognizable, not only in the midst of other “constructions,” but also among the type of human actions that such a device induces.
Others have observed this same potential: film makers such as Joris Ivens (De Brug, 1927-28) and Manoel de Oliveira (Douro, Faina Fluvial, 1931) – whom, already with their first feature films, decided to provoke this confrontation between two modern apparatus (the iron bridge and the movie camera); or sculptors such as Richard Serra, with his Railroad Turnbridge (1976) - a decisive work of the American avant-garde; also philosophers such as Martin Heidegger who thoroughly explored this ontological interest of the bridge: “The bridge is a thing and only that. Only? As this thing it gathers the fourfold.” (1951: 153). Therefore, without necessarily observing in the bridge that which these filmmakers, sculptor, and philosopher saw, Alyssa Casey & Naomi Kaly sense, in the same way as these other artists, a particular phenomenological event, or at least, the transitive device to rescue and assemble human experiences catalyzed by the existence of that object-bridge on the landscape, an object that creates landscape and from which this landscape truly assumes a meaning.
“The bridge swings over the stream “with ease and power.” It does not just connect banks that are already there. The banks emerge as banks only as the bridge crosses the stream. The bridge designedly causes them to lie across from each other... Thus the bridge does not first come to a location to stand in it; rather a location comes into existence only by virtue of the bridge.” (1951: 152-154)
By scaling down the architectonic structure of their bridges, by giving expression and extension to the voice and to the experience of whom crosses them, Alyssa Casey & Naomi Kaly thereby reveal the bridge as a phenomenological object, as the true raw material of their work upon which their device is activated. Therefore, the best philosophical and artistic genealogy resonates in this project, even more so because the piece conveys a decisive performative dimension, requiring from the user to accept the playful challenge of physically re-enacting the crossing. In this sense, the user succumbs to the manipulation, montage, and re-composition of voices and memories commanded through the small bead that traverses the conductive threads. With this performative dimension, Lisbon–San Francisco Bridge proposes to the user to live and incorporate the device, through the readings, visions, aspirations, and memories of the compressed multitude in an info-electronic mode.
One can question if Alyssa Casey & Naomi Kaly’s model, of which the aesthetic and technological parameters are unquestionable, could not be projected to encompass distant realities beyond those wherein bridges (these or others) are actually built. Observing the device that the artists so perfectly conceived, it is impossible not to think of the political potentiality contained therein, and the urgency to apply this device in negative, i.e., to realities marked by bridges that are for now impossible (the borders between Israel and Palestine, and Mexico and the United states, two of many examples).
One should take this projection not as something inspired by any ecumenical desire or a hypothetical consensus between opposite sites, but rather the contrary, the will to rescue the radical from the idea of conflict lying therein. If this were the case, the device Lisbon–San Francisco Bridge could be converted into an apparatus - in the sense that Benjamin gave to the term (1934) - that is, an exact equivalent of the way bridges, as Heidegger observed, can be inhabited as decisive actors in the global transformation processes of landscape. Again, one can think of the 25th of April Bridge, recently suggested by the Government as the solution for the high-speed train connection between Portugal and the rest of Europe. As the best praxis, the bridge, in its particularity, can constitute itself as an apparatus, i.e., an instrument unresigned to the very idea of “historical destiny” and to the absurdity of its political margins. Just like art, whenever accomplishing its mission. Here resides its ultimate (true) “fiction.”
Inês Barreiros | João Mário Grillo - June 2010
Benjamin, Walter. 1999 [1934]. “The Author as Producer”, in Selected Writings Volume 2 (1927-1934). Cambrigde: Harvard UP
Heidegger, Martin. 1975 [1951]. “Building, Dwelling, Thinking”, in Poetry, Language, Thought. NY: Harper & Row